Quando imaginamos o que aconteceu no passado do Brasil, um fantasma logo aparece na sala: o cruel e inescrupuloso coronel dono de latifúndios. Eis um personagem encravado na nossa memória, tão presente no imaginário brasileiro quanto o sertanejo pobre, o malandro carioca e a velhinha de Taubaté. Ao redor do latifundiário, toda o enredo teatral se organizaria: os escravos, os pequenos comerciantes, as prostitutas, toda a economia agrícola colonial “voltada para a exportação”, como dizem os livros didáticos. Afinal, quanto dessa figura é fantasia e quanto é história?
Como mostra o novo livro do Jorge Caldeira, História do Brasil com Empreendedores, a importância do latifundiário foi muito menor do que imaginamos. O personagem foi construído na década de 30 por Caio Prado, o primeiro historiador a enxergar o Brasil através do marxismo e suas estruturas de poder. Caldeira mostra que, apesar da força que o latifundiário ganhou depois de Caio Prado, ele foi um personagem lateral da história do Brasil. Não era tão poderoso, já que a terra valia muito pouco, quase nada. O que movia quase 90% da economia brasileira era o mercado interno, baseado em relações de pequenos comerciantes e empreendores. Esses personagens, mais distantes das relações de opressão que abriam os olhos dos marxistas, ficaram de fora do casting da história do Brasil. Apesar disso, eles tornaram a economia brasileira maior que a de Portugal já em 1800.
No Guia, eu cito estudos do historiador Bert Barickman que tomam o mesmo caminho. Analisando os registros de posses em vilas rurais ao redor de Salvador, o americano descobriu que a cena da casa-grande e senzala, com dezenas ou centenas de escravos, era raríssima. Só 4% deles viviam em fazendas com mais de 20 escravos. Em 59% dos casos, havia no máximo 4 escravos na casa – e uma boa parte de seus donos era formada por pardos ou negros alforriados.
Eu senti o choque entre o latifundiário imaginado e o real em 2005, quando fui pro meio da Amazônia cobrir a morte daquela freira americana, a Dorothy Stang. Depois de falar com as entristecidas colegas da freira, percebi que faltava encontrar com Bida, o proprietário de terras acusado de ser o mandante do assassinato. Pelos jornais, tinha lido que se tratava de um homem poderoso, um latifundiário que contratara um de seus capangas para matar a freira. Ao chegar à casa dele, levei um susto: tratava-se de uma tapera suja, sem vidros na janela, cheia de crianças barrigudas e bem menos equipada que a casa das freiras. Descobri ali que o tal coronel-latifundiário, assassino e inescrupuloso, era apenas um pobre qualquer.
O latifundiário e os fantasmas da história
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É lamentavel,mas o livro de Caldeira é uma decepção. O problema não é criticar o ultrapassado Caio Prado, mas o fato do próprio Caldeira se valer o tempo de categorias marxistas para sua interpretação. O resultado é muito pobre. Nem na USP eu vejo os professorres se remeterem tanto a obra de Marx para explicar aspectos da história do Brasil. Simpelsmente não dá.
Também soa ridículo ele tentar aliviar a barra do Caio Prado chamando-o de defensor da democracia e de uma sociedade mais justa. Caio era stalinista convicto: seu livro “União Soviética – um novo mundo” é uma das coisas mais nojentas já escritas por um intelectual brasileiro. Na verdade ele era muito melhor como historiador do que como ator político.